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«(i) Dois conceitos desempenham um papel relevante na compreensão da consciência histórica: a situação hermenêutica e o horizonte.
(ii) Há que partir da ideia de que nos encontramos sempre numa situação caracterizada, porque cada um está nela, e não diante dela, o que impede a obtenção do seu domínio completo. Neste sentido, podemos ter consciência de que nos encontramos em determinada situação e impossibilitados de a dominar em plenitude.
(iii) O mesmo sucede quando nos confrontamos com a tradição, pois o fato de dela fazermos parte limita as nossas possibilidades de reflexão.
(iv) Deste modo, o conceito de situação limita as nossas possibilidades de ver, isto é, fixa-nos um horizonte de visão que abarca o que é visível a partir de uma situação. É isto que permite afirmar: “A elaboração da situação hermenêutica significa, então, a obtenção do horizonte correto para as questões que se apresentam perante a tradição.»
— excerto do livro de que falei aqui, da autoria de Sofia Reimão, página 52
1/ Gadamer comete aqui uma falácia lógica. O item (ii) do excerto retrata, grosso modo, a ideia de Ortega y Gasset de “Eu, sou eu e as minhas circunstâncias”, e que mais tarde foi retomado por Heidegger e Sartre mediante o conceito de “facticidade”. Se eu “sou eu + as minhas circunstâncias”, não posso dominar a minha situação ou a minha facticidade. Ou seja, a facticidade obedece à necessidade.
Já no item (iv) — e seguindo o raciocínio existencialista implícito, como sendo verdadeiro, embora eu não concorde com ele e o considere falso —, a nossa situação face à tradição já não é de necessidade, mas antes de contingência. E a prova disso é que sempre houve quem não seguisse, ou recusasse seguir, uma qualquer tradição.
A falácia lógica de Hans-Georg Gadamer consiste exatamente em fazer uma comparação — e não uma analogia — entre a necessidade (individual) face à situação, por um lado, e a contingência (também individual) face à tradição, por outro lado, colocando os dois casos sob a mesma lógica de raciocínio. De fato, no caso da tradição (iv), e ao contrário do que acontece com a facticidade ou situação (ii), estamos nela (na tradição), ou não, e podemos não estar nela exatamente porque estamos também diante dela — o que não acontece na “situação”.
2/ Hans-Georg Gadamer é uma espécie de Schopenhauer do século XX: as mulheres adoram-no, porque é um filósofo do sentimento, tal como aconteceu com Schopenhauer. Não há mulher que não goste de ler Schopenhauer, onde o sentimento abunda e a lógica pauta-se por uma serena ausência. Essa será uma das razões, talvez, por que Sofia Reimão se dedicou a escrever um livro acerca de Gadamer (acrescente-se o carnaval da procura da feminilidade escondida na linguagem da História).
3/ Outro erro de Gadamer consiste em tentar definir a ética (por exemplo, questionando a “tradição”) por intermédio da hermenêutica entendida como análise da “finitude da espécie de humana e enquanto tal”, ou “História”. Neste sentido, podemos dizer, em modus ponens, que, para Gadamer,
História → hermenêutica; ∴ hermenêutica.
É por isso que podemos dizer que Gadamer é um “caso gadameriano”, assim como Freud é um “caso freudiano”.
Ou seja, o erro de Gadamer consiste em ignorar ostensivamente a pergunta que se coloca:
A História, enquanto “finitude da espécie de humana e enquanto tal”, ¿ tem uma causa ?
Gadamer faz de conta que esta pergunta não existe. Ou, se algumas vez a refere, é sempre de modo ambíguo. Gadamer é ambíguo amiúde — o que vai de encontro à feminilidade dos seus textos — e algumas vezes, até, ambivalente.
4/ Gadamer defende, por exemplo, a “abertura ao dogmático” no sentido do questionamento crítico da tradição. Mas — digo eu — a “abertura ao dogmático” pode ser dogmática. Aqui, Gadamer entra (mais uma vez) em contradição, porque se a facticidade é a condição da impossibilidade do domínio de situação, a própria “abertura ao dogmático” situa-se no contexto restritivo e necessário da facticidade. “Pescadinha de rabo na boca”. Ou, como escreveu o filósofo Leszek Kolakowski, “a cultura consiste num cânone de tabus ou, dito de outra maneira, uma cultura sem tabus é um círculo quadrado” — sendo que a tradição faz parte da cultura. E só é possível romper com um determinado cânone de tabus mediante a imposição de um outro cânone de tabus; e depois, falta saber se esse novo cânone de tabus é adequado não só à História, às características da natureza humana, assim como à preservação da espécie humana enquanto composta por seres racionais.
5/ Os valores de uma qualquer ética têm que ser universais (o que não significa que sejam unânimes), fundamentados pela Razão, intemporais, e facilmente distinguíveis nas suas características principais. Neste contexto, a única coisa que a hermenêutica nos pode dar é tentar descobrir as características de intemporalidade de alguns valores; mas não conseguirá nunca saber por que razão (causa) esses valores específicos são intemporais.
Por isso, tentar chegar à ética por intermédio da hermenêutica é um absurdo. Só através da metafísica se pode tentar estabelecer os valores de uma ética com as características supracitadas.
Fonte: http://espectivas.wordpress.com/2013/02/06/gadamer-e-a-tradicao/